outubro 18, 2024
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Pastoral do Empreendedorismo: Reflexões

O Precarizado, o Empreendedor e o Estado

Nos dias atuais, o empreendedorismo é frequentemente retratado como a resposta definitiva para os desafios econômicos e de carreira que enfrentamos. No entanto, é crucial refletir sobre a realidade dessa visão e a ideia errônea de que todos nós nascemos para ser empreendedores. De forma direta, a resposta é não. O empreendedorismo, assim como diversas outras atividades econômicas, não é destinado a todos. Cada pessoa tem suas próprias metas e objetivos de vida, que nem sempre se alinham com as exigências do empreendedorismo.

Para entender melhor esse cenário, devemos analisar o processo de precarização das relações de trabalho, um fenômeno global que, como destaca Ricardo Antunes, molda o capitalismo contemporâneo. Ao transformar o trabalho em uma condição cada vez mais instável e desprotegida, o capitalismo gera um ciclo de exclusão e incerteza que atinge milhões de trabalhadores, forçando-os a buscar alternativas como o empreendedorismo, muitas vezes por falta de opções reais de emprego formal. Nesse contexto, o Estado se retira de sua função social, deixando o trabalhador à mercê do mercado.

O Desmantelamento das Garantias Sociais e o Empreendedorismo como Solução Falsa

A promessa do empreendedorismo é sedutora: “se você quiser, você consegue”. Contudo, essa narrativa mascara uma realidade brutal. Antunes observa que o sistema capitalista, ao exaltar o empreendedorismo, transfere para o indivíduo o peso de sua própria sobrevivência, ao mesmo tempo em que exime o Estado de oferecer uma rede mínima de proteção social. O pequeno empreendedor, muitas vezes, surge da falta de alternativas e não de uma escolha genuína ou de uma vocação para os negócios.

Embora o conceito de empreendedorismo remonte aos comerciantes do final do século XVII, e tenha evoluído ao longo dos séculos, hoje ele é amplamente promovido como uma solução universal para o desemprego e a pobreza. No entanto, o empreendedorismo não deve ser visto como a única solução para os problemas econômicos. Muitos empreendedores enfrentam dificuldades estruturais, como falta de acesso a crédito, redes de apoio e infraestrutura adequada, que limitam suas chances de sucesso. A maioria das pessoas, especialmente as em situação de pobreza, não possui os recursos financeiros, educacionais e de rede necessários para iniciar e sustentar um empreendimento.

A Precarização do Trabalho e a Ilusão da Mobilidade Social

O fenômeno da precarização do trabalho, amplamente discutido por Ricardo Antunes, afeta tanto os países periféricos quanto os centrais, evidenciando um padrão de exploração global. Jovens qualificados migram em busca de melhores oportunidades, mas frequentemente são empurrados para empregos mal remunerados e precários. A migração de trabalhadores brasileiros para o Japão, Europa e EUA exemplifica essa busca por uma mobilidade social que, na maioria das vezes, se revela ilusória.

Essa precarização se intensifica com o avanço da tecnologia e da automação, que reduz a necessidade de trabalho vivo (humano), ao mesmo tempo em que aumenta o trabalho morto (máquinas). Assim, a narrativa de sucesso individual que acompanha o discurso empreendedorista esconde as barreiras estruturais que dificultam o acesso ao sucesso para a maioria. Apenas uma pequena parcela dos empreendedores consegue superar os obstáculos, enquanto muitos outros enfrentam fracassos e dificuldades.

O Papel do Estado na Era da Precarização

Historicamente, o Estado desempenhou um papel fundamental na regulação das relações de trabalho e na oferta de políticas sociais que garantissem dignidade aos trabalhadores. Porém, com o avanço do neoliberalismo, observamos um esvaziamento dessas funções estatais. Ao incentivar o empreendedorismo e culpar os indivíduos pela sua própria situação de desemprego, o Estado se exime de sua responsabilidade. A falta de políticas públicas inclusivas, que garantam acesso à educação de qualidade, serviços básicos e emprego justo, agrava a precarização e a exclusão social.

Pastoral do Empreendedor: Acolhendo e Evangelizando Empreendedores

No cenário de insegurança econômica e falta de apoio institucional, a Pastoral do Empreendedor, idealizada pelo Frei Rogério Soares de Almeida, emerge como uma iniciativa inovadora que busca fornecer uma resposta espiritual e emocional para os empreendedores. A pastoral visa suprir a lacuna deixada por instituições tradicionais ao oferecer apoio integral a quem se arrisca no universo do empreendedorismo, não apenas através de recursos práticos e de formação, mas também através do fortalecimento da fé, da espiritualidade e da comunidade.

A pastoral promove retiros espirituais, missas, bênçãos nas empresas e grupos de oração, criando um espaço onde os empreendedores podem encontrar suporte em suas jornadas, muitas vezes solitárias e repletas de desafios. Esse acolhimento espiritual é crucial, pois reconhece que a vida de quem empreende está permeada por incertezas, pressões constantes e um alto nível de responsabilidade que podem impactar profundamente o bem-estar mental e emocional. A pastoral, assim, age não apenas como uma rede de apoio espiritual, mas como um espaço de encontro e reflexão, onde os empreendedores podem recarregar suas energias e alinhar suas ações ao propósito maior de sua fé.

A Pastoral e Seus Limites

Apesar de suas boas intenções e da importância de seu trabalho, a Pastoral do Empreendedor não está isenta de críticas. Um dos pontos que merece reflexão é a glamorização do empreendedorismo como uma solução quase universal para os problemas socioeconômicos enfrentados por muitos. A pastoral corre o risco de reforçar a ideia de que empreender é a principal saída para a pobreza e a marginalização, sem reconhecer que, muitas vezes, as barreiras estruturais são muito mais complexas e difíceis de transpor do que simplesmente promover a formação empreendedora. Embora projetos como o @petasdofrei ofereçam formação e consignação de produtos para pessoas em situação de vulnerabilidade, é fundamental lembrar que o sucesso no empreendedorismo depende não apenas da educação e da boa vontade, mas também de recursos materiais, redes de apoio e condições econômicas estáveis.

Além disso, existe o perigo de se reduzir o papel do empreendedor a uma fonte de recursos financeiros para a Igreja. Em vez de ver o empreendedor como um parceiro puramente econômico, a pastoral faz bem ao destacar que eles são, antes de tudo, membros da comunidade que precisam de apoio, cuidado e orientação. No entanto, essa perspectiva pode ser ampliada para que a comunidade e a Igreja não apenas apoiem espiritualmente, mas também promovam uma crítica consciente ao sistema que explora esses empreendedores. Ou seja, deve haver uma abertura para o diálogo sobre as limitações do empreendedorismo e sobre a necessidade de estruturas sociais e econômicas mais justas, que permitam a todos terem condições dignas de vida, com ou sem um negócio próprio.

A Crítica à Noção de “Não Dar o Peixe, Ensinar a Pescar”

Um conceito bastante difundido em projetos de empreendedorismo social e iniciativas de combate à pobreza é o de “não dar o peixe, mas ensinar a pescar” — ou seja, em vez de fornecer esmolas, é melhor dar oportunidades para que as pessoas possam criar suas próprias fontes de renda, através do empreendedorismo. Essa ideia, à primeira vista, parece profundamente positiva, pois pressupõe que dar meios para que alguém sustente a si mesmo é uma forma mais digna de assistência do que apenas oferecer ajuda momentânea. No entanto, essa perspectiva é muitas vezes simplista e descolada da realidade de milhões de pessoas.

Primeiramente, muitas pessoas em situação de vulnerabilidade não têm as condições mínimas para se tornarem empreendedoras. Falta-lhes educação adequada, acesso a crédito, infraestrutura e, muitas vezes, até mesmo uma rede de apoio emocional e social que possa sustentar o desafio de iniciar um negócio. A noção de que todas as pessoas são capazes de empreender é uma falácia que desconsidera o contexto em que a maioria das pessoas vive. A exclusão social e econômica que muitas enfrentam é resultado de décadas, senão séculos, de marginalização e desigualdade, que não podem ser resolvidas apenas com cursos de empreendedorismo.

Além disso, o empreendedorismo não pode substituir o papel das políticas públicas e de uma rede de proteção social robusta. A segurança oferecida por programas sociais, como o acesso à saúde, à educação e a uma renda mínima, é essencial para que os indivíduos possam até mesmo considerar empreender. Sem essas bases, o risco de fracasso é imenso, e o impacto do fracasso no empreendedorismo é muito mais severo para aqueles que já estão em situação de vulnerabilidade. Portanto, oferecer exclusivamente oportunidades para empreender, sem dar suporte contínuo ou sem garantir uma rede de proteção social, é uma visão incompleta.

Ao focar exclusivamente em “ensinar a pescar”, corre-se o risco de individualizar a solução de problemas sociais, eximindo o Estado e a sociedade de sua responsabilidade coletiva em criar um ambiente em que todos possam prosperar. Empreender não é uma tarefa simples e, para muitos, pode se tornar um fardo insustentável se não houver o suporte necessário. O equilíbrio entre caridade direta e capacitação empreendedora deve ser encontrado, garantindo que a dignidade das pessoas seja preservada, não apenas através do trabalho, mas também pelo reconhecimento de seus direitos como cidadãos.

O Papel da Pastoral no Fortalecimento de uma Visão Holística

A Pastoral do Empreendedor, portanto, ocupa um espaço único e valioso ao combinar o apoio espiritual com a formação para o empreendedorismo, mas pode expandir sua atuação ao refletir sobre essas nuances. O verdadeiro sucesso dessa iniciativa estaria em não apenas capacitar empreendedores, mas também em promover uma visão crítica do mercado e das limitações do empreendedorismo enquanto solução para todos os problemas. A pastoral pode, e deve, se posicionar também como uma voz que clama por justiça social, demandando melhores condições para os pequenos empresários, ao mesmo tempo em que apoia políticas públicas que reduzam a desigualdade estrutural.

Empreender é uma escolha válida, mas não uma obrigação ou uma solução universal. O apoio da Igreja, através de iniciativas como a pastoral, deve ir além do incentivo ao empreendedorismo, promovendo um espaço de acolhimento, reflexão e defesa de políticas que garantam a dignidade de todos, independentemente de sua vocação ou capacidade de empreender. Afinal, a verdadeira transformação social ocorre quando as estruturas são justas, e não apenas quando se oferece o “caminho do empreendedorismo” como única alternativa para escapar da pobreza.

Conclusão: A Precarização como Projeto Ideológico e a Realidade do Empreendedorismo

O empreendedorismo e a precarização são, de certa forma, dois lados de uma mesma moeda no capitalismo contemporâneo. Ambos revelam um processo ideológico que transfere para o indivíduo a responsabilidade por sua própria sobrevivência, enquanto o Estado e o capital se eximem de suas responsabilidades sociais. Ao mesmo tempo, o empreendedorismo não deve ser visto como uma solução universal, pois muitas pessoas simplesmente não possuem a inclinação ou os recursos para se tornarem empreendedores bem-sucedidos.

Portanto, o caminho para uma sociedade mais justa não está apenas em incentivar o empreendedorismo, mas também em fortalecer políticas públicas que garantam direitos e oportunidades a todos. A Pastoral do Empreendedor, ao reconhecer as dificuldades e desafios enfrentados por quem se arrisca nessa jornada, oferece um apoio essencial, lembrando que o empreendedorismo, assim como qualquer outra atividade, requer não apenas capacidade técnica, mas também apoio emocional, espiritual e social.

O verdadeiro progresso social só será alcançado quando o Estado, o mercado e a sociedade civil reconhecerem que o bem-estar coletivo depende de uma rede de apoio robusta, que vá além da simples celebração do sucesso individual e abranja a inclusão, a solidariedade e a justiça social.

Referências Bibliográficas

  • Antunes, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
  • Antunes, R. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2002.
  • Almeida, R. S. (Frei). Pastoral do Empreendedor: espiritualidade e apoio na caminhada empreendedora. Projeto da Pastoral do Empreendedor, disponível em [site oficial da Pastoral].
  • Schumpeter, J. Capitalism, Socialism, and Democracy. Harper Perennial Modern Thought, 2008 (primeira edição de 1942).

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