É possível um chamado sem quem chama?

A palavra “vocação” carrega um peso que transcende a mera escolha de uma profissão ou caminho de vida. Ela remete a algo mais profundo, que toca o cerne da existência humana. Envolvendo propósito e significado, a vocação frequentemente é interpretada como um convite a viver de maneira plena e alinhada com algo maior que nós mesmos. No entanto, surge uma questão fundamental: é possível falar de vocação sem reconhecer a existência de um “Chamador”? Essa indagação nos conduz a uma reflexão sobre as complexas relações entre fé, filosofia e a condição humana, revelando que a noção de vocação possui raízes que se estendem ao espiritual e ao transcendente.

Seja na tradição religiosa ou no pensamento filosófico, a ideia de vocação sempre foi associada a uma força que transcende o indivíduo. Mais do que uma simples inclinação pessoal ou profissional, ela reflete a percepção de um propósito pré-existente, algo que somos chamados a descobrir e viver. Para muitos, especialmente na tradição cristã, essa chamada é um ato de Deus, que nos convida a participar de Sua obra no mundo. Mas essa visão é desafiada por interpretações modernas e seculares, que procuram dissociar a vocação de um Chamador divino.

Genealogia

A palavra “vocação” tem suas raízes no latim “vocatio”, derivada do verbo “vocare”, que significa “chamar” ou “invocar”. Originalmente, o termo era usado para designar um chamado formal ou oficial, frequentemente relacionado a uma convocação pública. No contexto do Império Romano, “vocatio” podia indicar tanto um chamado judicial quanto um convite para integrar algo de maior relevância social ou política. Esse significado inicial já trazia uma dimensão de direcionamento, onde o chamado era visto como algo que envolvia responsabilidade ou propósito.

Com o avanço do cristianismo na antiguidade tardia, o termo foi apropriado pela teologia cristã, ganhando uma conotação espiritual. “Vocatio” passou a ser usado para descrever o chamado de Deus aos fiéis, especialmente no que se refere à vida de santidade ou a vocações específicas como o sacerdócio, a vida religiosa ou o matrimônio. Essa transformação ampliou o significado da palavra, que deixou de ser apenas uma convocação externa para se tornar um chamado interno e transcendente. A vocação, nessa perspectiva, não era meramente uma função ou posição, mas um convite divino para realizar um propósito maior.

No medievo, a ideia de vocação foi ainda mais refinada por teólogos como Tomás de Aquino, que vinculou o termo à noção de propósito ou telos, como proposto por Aristóteles. A vocação começou a ser entendida como um direcionamento divino que orienta o ser humano ao seu fim último: Deus. Essa visão teológica teve grande impacto na cultura ocidental, influenciando profundamente a maneira como as pessoas concebiam suas vidas e escolhas. A Reforma Protestante, no século XVI, trouxe outra nuance importante, ao enfatizar que todos os trabalhos, quando feitos para a glória de Deus, poderiam ser vistos como uma vocação, democratizando o conceito que antes estava restrito às ordens religiosas.

Nos tempos modernos, o termo “vocação” sofreu uma secularização, sendo amplamente utilizado em contextos como carreiras, talentos e aspirações pessoais. Embora ainda carregue a ideia de um chamado, a palavra muitas vezes é desvinculada de sua origem espiritual e passa a ser interpretada como uma inclinação ou predisposição individual. No entanto, mesmo nesse uso contemporâneo, a essência da palavra remete a algo que transcende o indivíduo, um direcionamento que sugere propósito e significado, seja ele atribuído pela divindade, pela sociedade ou pela própria consciência. Assim, a genealogia da palavra “vocação” revela uma rica história de transformações, que reflete as mudanças culturais, religiosas e filosóficas ao longo dos séculos.

O Chamado e o Telos Aristotélico

Aristóteles foi um dos primeiros a explorar a ideia de propósito intrínseco, ou telos. Para ele, todas as coisas têm uma finalidade específica que define sua essência. Uma ferramenta, como uma faca, é considerada boa quando cumpre bem sua função, que é cortar. Da mesma forma, o ser humano é bom quando vive de acordo com seu propósito. Esse estado de realização plena, chamado de eudaimonia, é alcançado ao viver de forma virtuosa e em harmonia com a natureza do que somos.

Esse conceito nos convida a refletir sobre o que significa viver bem. Aristóteles acreditava que alcançar nosso telos envolve uma busca contínua pela virtude e pelo autoconhecimento. No entanto, seu pensamento não oferece uma resposta clara sobre quem ou o que define esse propósito. Aqui, entra Tomás de Aquino, que combina a visão aristotélica com a teologia cristã, afirmando que o telos humano não é uma construção autônoma, mas um dom de Deus.

Para Aquino, o propósito humano está relacionado à vontade divina, e a vocação é a manifestação desse plano. Deus, como Criador, não apenas dá vida, mas também oferece direção. A vocação, portanto, é uma resposta ao chamado de Deus, que nos guia em direção a uma existência plena e significativa. Sem essa fonte transcendente, o conceito de vocação perde sua profundidade, tornando-se uma construção subjetiva e arbitrária.

Ainda que a filosofia aristotélica seja fascinante, ela destaca uma limitação comum nas explicações seculares do propósito humano: a ausência de um Chamador. Enquanto Aristóteles enxergava o telos como uma característica intrínseca, Aquino apontava para algo maior, uma fonte externa que define e sustenta esse propósito. Isso nos leva a reconhecer que, sem um Chamador divino, a ideia de vocação perde sua coerência fundamental.

O Contraponto Moderno: Freud e Arendt

Com a modernidade, a ideia de um Chamador começou a ser questionada. Para Freud, os impulsos humanos são explicados por forças inconscientes, como o Ego, o Id e o Superego, que moldam nossas ações e decisões. A felicidade, segundo ele, está no equilíbrio desses elementos, e não em um propósito divinamente ordenado. Esse pensamento reflete uma visão mais pragmática da condição humana, reduzindo a vocação a um mecanismo psicológico que busca satisfazer nossas necessidades e desejos internos.

Hannah Arendt, por sua vez, oferece uma perspectiva distinta. Em sua obra A Condição Humana, ela argumenta que o florescimento humano só é possível através do engajamento com a comunidade e com as instituições políticas. Para Arendt, a vocação não está em um Chamador transcendente, mas nas relações humanas que moldam nossa identidade e dão sentido à vida. Essa visão destaca a importância do coletivo e da participação ativa na sociedade como elementos centrais do propósito humano.

Apesar de rejeitarem um Criador, tanto Freud quanto Arendt reconhecem que os seres humanos buscam significado. Esse reconhecimento ressalta uma contradição: mesmo em uma visão secular, a ideia de propósito persiste, sugerindo que há algo intrínseco à condição humana que nos leva a buscar um “chamado”. Isso nos leva a questionar se, de fato, é possível abandonar completamente a noção de um Chamador, ou se essa busca é uma expressão de algo mais profundo, que transcende explicações puramente materiais.

Por mais que as interpretações modernas tentem reduzir a vocação a uma construção biológica ou social, elas não conseguem eliminar a sensação de que há algo mais. A busca por propósito, mesmo em um contexto secular, reflete uma inquietação que aponta para algo maior. Esse algo maior, para os que creem, é o Chamador divino, que oferece não apenas direção, mas também sentido à existência.

Chamados Seculares: Uma Contradição?

Na era contemporânea, é comum ouvir pessoas se referirem ao trabalho ou à carreira como “vocação”. No entanto, essa linguagem frequentemente carece de conexão com uma base espiritual ou transcendente. Em plataformas como LinkedIn, por exemplo, a ideia de vocação é usada para descrever objetivos pessoais ou profissionais, muitas vezes dissociados de qualquer Chamador. Isso cria uma tensão: ao falar de vocação, estamos assumindo um propósito pré-estabelecido ou apenas projetando significado em nossas escolhas?

Essa ressignificação da vocação reflete uma tentativa de preencher o vazio deixado pelo afastamento da religião. Mesmo sem um Chamador, as pessoas continuam a buscar sentido, revelando a necessidade humana de encontrar propósito. No entanto, ao desvincular a vocação de sua origem transcendente, corremos o risco de reduzi-la a uma questão de conveniência ou utilitarismo, perdendo a profundidade que a torna significativa.

Além disso, essa visão secular da vocação ignora a dimensão comunitária e relacional que é central à tradição religiosa. Na fé cristã, por exemplo, a vocação não é apenas individual, mas envolve um compromisso com os outros e com Deus. Sem essa perspectiva, a vocação se torna uma busca solitária, muitas vezes limitada ao sucesso pessoal ou à autorrealização.

Por fim, o uso secular do termo “vocação” pode ser visto como um eco da visão religiosa, uma tentativa inconsciente de recuperar algo que foi perdido. Essa contradição reflete a dificuldade de abandonar completamente a ideia de um Chamador, mesmo em um mundo que busca explicações puramente naturais. No fundo, a noção de vocação continua a apontar para algo que transcende o humano, sugerindo que nossa busca por propósito está enraizada em uma realidade maior.

Vocação e Vocacionado

O conceito de vocação não se completa sem considerar o vocacionado, ou seja, aquele que recebe o chamado. A relação entre a vocação e o vocacionado não é passiva, mas dinâmica, exigindo não apenas escuta, mas também uma resposta prática. Sentir-se chamado é apenas o início de uma jornada; a verdadeira realização da vocação está em agir conforme o chamado e integrar esse propósito à vida cotidiana.

Responder a uma vocação exige, antes de tudo, discernimento. Para identificar o chamado, o vocacionado precisa estar aberto a ouvir, seja através da oração, da reflexão ou do contato com a comunidade. Esse processo de escuta envolve humildade e coragem para questionar não apenas o que queremos, mas também o que somos chamados a ser. Na tradição cristã, esse discernimento é frequentemente guiado pelo Espírito Santo, que ilumina os passos do vocacionado e confirma a autenticidade do chamado.

Uma vez identificado o chamado, é necessário tomar uma decisão. Essa resposta prática pode assumir diferentes formas, desde um compromisso de vida, como o sacerdócio ou o matrimônio, até a dedicação a um trabalho específico ou missão. Aqui, a entrega ao chamado revela-se essencial. O vocacionado não apenas aceita o chamado, mas se dispõe a vivê-lo plenamente, muitas vezes enfrentando desafios, renúncias e sacrifícios em nome de um propósito maior.

Outro aspecto fundamental é a perseverança. Responder ao chamado é um ato inicial, mas a fidelidade ao longo do tempo é o que dá profundidade à vocação. A vida está repleta de obstáculos, e o vocacionado precisa confiar que o Chamador continuará a sustentar e guiar sua jornada. Essa confiança é alimentada pela oração, pelo estudo e pelo apoio da comunidade, que ajudam o vocacionado a permanecer firme em sua missão.

Por fim, a vocação só se realiza plenamente quando o vocacionado a traduz em ação concreta, servindo aos outros e contribuindo para a construção de um mundo mais alinhado aos valores do amor e da justiça. Assim, a vocação deixa de ser apenas uma ideia ou ideal e se torna uma realidade viva, que transforma não apenas o vocacionado, mas também todos aqueles com quem ele entra em contato. A ação prática, então, é o meio pelo qual o chamado se manifesta no mundo e se torna um testemunho do propósito divino.

No Fim, Quem Chama é Sempre Ele

O chamado de Deus muitas vezes se manifesta de maneiras que vão além de uma experiência mística ou sobrenatural. Ele atua através das pessoas, utilizando suas palavras, ações e testemunhos para alcançar o coração dos outros. É na convivência humana, nas relações cotidianas, que a voz divina frequentemente se faz ouvir. Um conselho de um amigo, o exemplo de uma vida dedicada ao bem ou até mesmo o encorajamento em momentos de dúvida podem ser instrumentos pelos quais Deus desperta no indivíduo a consciência de sua vocação.

Na história bíblica, há inúmeros exemplos de como Deus chamou seus escolhidos através de outros. Samuel ouviu o chamado do Senhor por meio do sacerdote Eli, que o ajudou a discernir a origem da voz que ele escutava. Os discípulos foram chamados por Cristo diretamente, mas em várias ocasiões o chamado de uns se estendeu a outros, como aconteceu com André, que apresentou Jesus a seu irmão Pedro. Esses episódios mostram que o chamado divino não é um ato isolado, mas muitas vezes é mediado por alguém que já vive sua própria vocação e, ao fazê-lo, torna-se um canal da graça divina.

Além disso, o outro desempenha um papel crucial ao revelar a necessidade de amor e serviço, que são essenciais à vocação cristã. A voz de Deus pode vir do sofrimento de quem está à margem da sociedade, da angústia do enfermo, ou até mesmo da alegria de uma criança. O chamado, assim, não é apenas uma experiência interna, mas um movimento que surge ao enxergar o rosto do outro como expressão do divino. Foi assim que Madre Teresa de Calcutá encontrou sua vocação ao servir os mais pobres entre os pobres: ouvindo o chamado de Deus na dor daqueles que ela encontrava diariamente.

Reconhecer que Deus fala por meio do outro requer sensibilidade e disposição para escutar. Nem sempre o chamado se apresenta de forma clara ou imediata; pode surgir em pequenos gestos, em palavras simples ou até em momentos de silêncio compartilhado. No entanto, é sempre Ele quem chama, seja diretamente ao coração ou utilizando a humanidade como sua voz e suas mãos. Assim, viver a vocação é, ao mesmo tempo, responder ao chamado de Deus e reconhecer que, ao servir o outro, também nos tornamos instrumentos para que outros escutem a voz divina e descubram seu próprio caminho.

O Fundamento da Vocação Religiosa

A vocação religiosa não é fruto de construções humanas ou impulsos biológicos. Ela é um chamado divino, que nos convida a participar de algo maior que nós mesmos. Na tradição cristã, esse chamado é uma expressão do amor de Deus, que nos criou para viver em comunhão com Ele e com os outros. Assim, a vocação não é apenas uma escolha pessoal, mas uma resposta a um convite que vem de fora, de Deus.

Essa dimensão transcendente é o que diferencia a vocação religiosa de outras formas de propósito. Enquanto as interpretações seculares se concentram na autorrealização, a vocação religiosa aponta para o serviço ao próximo e a Deus. Ela nos desafia a olhar além de nós mesmos, reconhecendo que fomos criados não para viver isoladamente, mas em relação com o outro.

Além disso, a vocação religiosa revela o caráter relacional da existência humana. Fomos criados para amar e ser amados, e é nesse contexto que encontramos nosso verdadeiro propósito. Essa visão contrasta com as abordagens modernas, que frequentemente reduzem a vocação a uma busca individualista por satisfação ou sucesso.

Ao final, percebemos que não há vocação religiosa sem o Chamador. É Deus quem dá sentido à nossa vida, revelando nosso propósito através do chamado. Sem Ele, a ideia de vocação se torna vazia, uma sombra do que realmente significa. Afinal, fomos feitos para o amor, e é no amor que encontramos nossa verdadeira vocação.

Bibliografia Complementar

  1. Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
  2. Aquino, Tomás de. Suma Teológica. São Paulo: Paulus, 2001.
  3. Arendt, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
  4. Freud, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  5. Frankl, Viktor. Em Busca de Sentido. Petrópolis: Vozes, 2019.
  6. Hume, David. Investigação sobre o Entendimento Humano. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
  7. Pieper, Josef. As Virtudes Fundamentais. São Paulo: Loyola, 1997.
  8. Ratzinger, Joseph. Introdução ao Cristianismo.

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