Não adianta subir a montanha 70 vezes 7 e voltar pequeno
Subir a montanha, seja literalmente de corpo ou metaforicamente de espírito, é uma ação que por si só tem uma potência para se colocar na jornada do autoconhecimento e da transformação. Mas, pergunto: como garantir que essa escalada, repleta de signos, significados e desafios, realmente transforme o homem, sem que ele retorne pequeno, preso aos antigos modelos que vive ou que tanto critica?
Nas Alturas da Existência: Entre a Busca e o Espelho
Se você não estiver fora da terra, já deve ter ouvido sobre alguns grupos, sempre “de homens” e ligados a Igrejas Cristãs que vem buscando ambientes naturais, como montanhas e serras. A proposta quase sempre é a mesma, incluir atividades como acampamentos de adoração e encontros de louvor e pregação, com o objetivo de resgatar não só noções, mas valores fundamentais e tradicionais de paternidade, conjugalidade e cidadania, e não só. A solidão e o esforço físico quando aparecem são vistos como ferramentas para confrontar fragilidades e redefinir identidades, sob a justificativa de que a modernidade teria corrompido valores masculinos que estão se perdendo.
Essas práticas, contudo, levantam questionamentos. A ênfase em “dopaminar” a superação pessoal pode reduzir a transformação a uma experiência performática, onde o “renascimento” se torna símbolo de status em vez de mudança concreta. A ausência de critérios para medir o impacto real dessas vivências fora do ambiente isolado expõe uma contradição: como garantir que a reflexão nas alturas se traduza em ações no cotidiano, marcado por responsabilidades familiares e sociais?
Outro ponto crítico é a idealização de papéis fixos, como “protetor” ou “líder”, que ignora a complexidade das relações contemporâneas. A busca por um modelo pré-definido de masculinidade pode reforçar estereótipos, em vez de estimular a adaptação a dinâmicas mais igualitárias. Além disso, a exclusão de outros gêneros nesses espaços limita o diálogo necessário para desconstruir hierarquias historicamente arraigadas.
A eficácia dessas jornadas depende de como os participantes reinserem suas experiências na realidade. Se a renovação anunciada não se materializar em gestos como divisão equitativa de tarefas domésticas, combate ao machismo ou engajamento em causas coletivas, o ritual se resumirá a uma fuga temporária. A montanha, então, seria menos um espelho da transformação e mais um cenário para nostalgia de papéis que já não cabem no mundo atual e se tornam desafios no retorno.
A Ascensão como Metáfora e o Desafio do Retorno
A escalada de montanhas é apresentada como uma metáfora para superar fragilidades da vida moderna, como distrações digitais e pressões profissionais. O esforço físico e o isolamento temporário são vistos como meios de reconexão consigo mesmo e com valores supostamente perdidos. No entanto, a eficácia dessa prática depende de sua aplicação no cotidiano, já que a transformação real não se limita ao gesto simbólico da subida, mas exige mudanças práticas em relações e responsabilidades diárias.
O risco está em reduzir a experiência a um ritual performático, onde a superação pessoal vira um troféu de autossuperação, sem questionar estruturas sociais mais amplas. A busca por transcendência nas alturas pode mascarar a necessidade de enfrentar conflitos reais, como desigualdades de gênero e a divisão injusta de tarefas domésticas. Se o aprendizado da montanha não se converte em ações concretas, como maior envolvimento afetivo ou combate ao machismo, a jornada perde sentido prático.
Outra crítica reside na idealização de papéis tradicionais, como o homem provedor ou protetor, que esses grupos frequentemente reforçam. A tentativa de “resgatar” modelos fixos de masculinidade ignora a urgência de redefinir tais papeis em uma sociedade que demanda relações mais horizontais. A exclusão de vozes femininas ou não binárias nesses espaços também limita a possibilidade de diálogos que desafiem visões estereotipadas.
No entanto, a validade dessas experiências depende de seu impacto após o retorno. Se a renovação anunciada não se reflete em gestos como dividir equitativamente o cuidado dos filhos, apoiar causas feministas ou repensar privilégios, a montanha serve apenas como cenário de uma autoimagem idealizada. A verdadeira ascensão não está em conquistar picos geográficos, mas em descer e transformar o chão onde a vida coletiva se constrói.
A Narrativa da “Jornada Heroica” e Seus Contrapontos
Muitas das narrativas destes grupos exaltam a figura do herói, invocando arquétipos de guerreiros e exploradores para justificar a busca por uma masculinidade “autêntica”. Mas, a que custo?
- Qual é o verdadeiro significado do heroísmo hoje?
Será que conquistar picos e superar limites físicos traduz a coragem necessária para enfrentar desafios sociais, como a violência de gênero e as desigualdades? - E a espiritualidade na “reconexão divina”?
Ao buscar um sagrado masculino, corremos o risco de ancorar o divino a papéis fixos e limitados. Como transformar essa busca em uma prática que abra espaço para o cuidado com o outro, sem se restringir a estereótipos ultrapassados? - Sobre a criação de uma “irmandade”:
A exclusividade dos círculos masculinos pode favorecer a vulnerabilidade, mas também tende a reproduzir a lógica de isolamento. Por que não ampliar esse diálogo e incluir mulheres, pessoas não binárias e outras identidades, enriquecendo a transformação com múltiplas perspectivas? - Quanto ao “resgate” de papéis tradicionais:
Recuperar o ideal do homem como pai, esposo e cidadão idealizado pode parecer uma forma de resgatar valores, mas será que essa tentativa não reforça uma masculinidade rígida e excludente? Não seria mais enriquecedor reimaginar esses papéis, permitindo uma convivência baseada na equidade e na partilha de responsabilidades? - E a natureza, nossa eterna professora:
As experiências na montanha ensinam humildade e conexão, mas é crucial questionar: como evitar que a busca por renascimento se torne apenas um cenário estético para epifanias, sem um engajamento real na proteção dos biomas e dos espaços públicos? Como transformar o reverenciar da terra em ações que enfrentem as ameaças da mineração e do agronegócio?
O Caminho de Volta: A Montanha Não Basta
A experiência nas alturas pode gerar epifanias, mas sua validade depende da capacidade de traduzir reflexões em práticas cotidianas. O isolamento em ambientes naturais oferece clareza momentânea, mas como garantir que a empatia cultivada no topo da serra se mantenha diante de conflitos domésticos ou da pressão social? Se o discurso de renovação não incluir a divisão equitativa de tarefas ou o combate ao machismo no trabalho, restará apenas uma narrativa vazia.
A espiritualidade invocada nessas jornadas frequentemente evoca justiça e conexão com o sagrado, mas como evitar que ela se torne um mero escape individualista? Se a busca por Deus nas montanhas não se desdobrar em apoio a políticas públicas de preservação ambiental ou em denúncias contra projetos de mineração que destroem essas mesmas paisagens, qual o sentido da “reconexão com a natureza”? A transcendência, sem ação política, é apenas um refúgio estético.
A defesa de papeis tradicionais, como o homem protetor ou provedor, também merece questionamento: como conciliar essa visão com a urgência de desconstruir hierarquias de gênero? Se a “missão masculina” anunciada nos retiros não desafiar a cultura do estupro ou a lgbtfobia, não estará reproduzindo a mesma lógica que diz combater? A montanha não pode ser um álibi para ignorar que a violência patriarcal também habita gestos cotidianos.
Se a jornada termina com selfies no cume e discursos de superação, qual seu legado real? Transformações efetivas exigem mais do que retiros: demandam revisão de privilégios, alianças com movimentos sociais e accountability constante. A pergunta crucial persiste: quantos desses homens, ao descerem, estão dispostos a trocar conforto estrutural por mudança concreta? Enquanto a resposta for incerta, a montanha seguirá sendo um espelho que reflete mais desejo do que realidade.
Além do Cume
A busca por significado em ambientes naturais, como montanhas, pode oferecer reflexão e renovação para homens que sentem esgotamento em seus papéis sociais. Subir uma serra ou pernoitar sob as estrelas permite confrontar fragilidades e reavaliar prioridades, mas isso não substitui a necessidade de mudanças estruturais. Se a experiência se limitar a uma jornada individual, sem questionar privilégios ou sistemas opressores, qual o impacto real dessa “transformação”? A montanha pode ser um catalisador, mas não a solução para crises que exigem ação coletiva.
A metáfora bíblica de ascender para encontrar Deus ganha sentido quando a espiritualidade inspira justiça, não quando é usada para validar discursos vazios. Se a subida reforçar apenas a ideia de um homem “escolhido” ou “superior”, como evitar que reproduza hierarquias excludentes? A conexão com o sagrado deve incluir responsabilidade: proteger biomas ameaçados, ouvir comunidades locais e repensar o consumo. Caso contrário, a montanha vira cenário de uma fé desconectada da terra que pisa.
Reconhecer que a escalada vale a pena para alguns não significa banalizar seu simbolismo. Para homens em busca de clareza, o isolamento pode ser terapêutico, mas é preciso diferenciar autocuidado de escapismo. Enquanto alguns renascem nas alturas, outros se transformam em lutas cotidianas: cuidar de filhos doentes, apoiar parceiras em carreiras ou combater o racismo no trabalho. Por que valorizar apenas a coragem espetacularizada, e não a que se pratica no silêncio do dia a dia?
A verdadeira plenitude exige equilíbrio entre jornadas íntimas e compromisso social. Descer da montanha implica assumir que a masculinidade saudável não se prova em retiros ou finais de semana, mas em dividir poder, recursos e afeto. Plantar árvores, denunciar assédio e fiscalizar políticas públicas são atos tão sagrados quanto meditar no alto. A pergunta que fica é: quantos estão dispostos a trocar o conforto da autorreferência pela complexidade de servir ao coletivo?
Conclusão Inconclusiva:
Subir montanhas pode ser válido para quem precisa de ruptura com hábitos, mas não é a única via e nem a mais relevante para a transformação masculina. Enquanto a “ascese pessoal” tem seu lugar, a vida plena se constrói ao reconhecer que a “metáfora da subida” só faz sentido se desembocar em três ações: descer, ouvir e agir. Se a montanha servir para isso, que seja. Se não, será apenas mais um rito que o vento leva e que você pode subir 70 vezes 7 e sempre irá voltar o mesmo: pequeno.