A Resistência
Existe entre nós uma força invisível, sutil e insistente que atua contra tudo o que é bom, belo e verdadeiro. Ela não grita, não ameaça, não aparece como algo diabólico ou assustador. Ao contrário, veste-se de conforto, de boas desculpas, de lógica conveniente. Essa força, foi citada por Steven Pressfield, a nominado de “Resistência” em sua obra A Guerra da Arte, e ditando que ela é um inimigo sorrateiro, presente em cada passo de quem ousa criar, servir, doar-se, viver uma vocação com plenitude. Se, no universo artístico de Pressfield, a Resistência se revela como procrastinação, perfeccionismo e medo do fracasso, no campo espiritual ela assume formas ainda mais sofisticadas: desânimo disfarçado de prudência, abandono da oração justificado por cansaço, frieza na missão revestida de zelo organizacional. E, talvez o mais perigoso: a ilusão de que a entrega a Deus pode esperar mais um pouco.
Convido você a aprofundar sobre essa força que atua nas sombras da vida consagrada, leiga e pastoral. Mais do que um conceito psicológico ou uma metáfora criativa, a resistência será aqui compreendida como uma realidade espiritual concreta, que impede o florescimento da santidade, a ousadia missionária e a autenticidade vocacional. Ela não é algo externo. Vive dentro de cada pessoa, como uma voz baixa que sussurra: “Não hoje. Você não está pronto. Melhor esperar.”
Na tradição Católica, já conhecemos esse fenômeno sob outros nomes. Os Padres do Deserto a chamaram de “acedia“, uma preguiça da alma que mina o fervor espiritual. São João da Cruz a descreveu como “noites escuras”, momentos em que tudo parece árido e sem sentido. São Inácio de Loyola identificou sua ação na “desolação espiritual”, quando a alma perde o gosto pelas coisas de Deus. Mas hoje, diante dos desafios contemporâneos, talvez seja preciso um novo vocabulário, mais acessível às novas gerações e às realidades da vida moderna, sem perder a profundidade da tradição. “Resistência” é um desses nomes. E o que pretendemos aqui é fazer com que aqueles que a enfrentam, padres, religiosos, seminaristas, leigos engajados, saibam identificá-la, compreendê-la e vencê-la.
A Resistência, diferentemente de tentações passageiras, não busca apenas fazer o cristão cair. Ela deseja estagnar, congelar, adiar indefinidamente. É a força que impede o início da caminhada. É a paralisia diante do chamado. É o medo disfarçado de discernimento. É o perfeccionismo que impede a ação. É o ativismo que evita o silêncio necessário à escuta de Deus. Mais do que uma batalha de momentos, trata-se de uma guerra de constância. Aqueles que vencem a Resistência não são necessariamente os mais fortes, mas os que persistem. Não são os mais preparados, mas os que disseram “sim”, apesar de tudo.
Buscamos aqui que este texto seja uma companhia. Um sopro de ânimo para os que vêm lutando em segredo a dias, meses ou anos. Um espelho onde cada possa reconhecer as formas como a Resistência tem se infiltrado em sua vida. Um pequeno mapa que ajude a localizar suas armadilhas. E, principalmente, uma tocha que ilumine o caminho para vencê-la, com a graça de Deus e com os meios que a própria Igreja nos oferece.
Não nos deteremos em teorias abstratas. Buscaremos narrativas concretas, experiências de santos que lutaram contra essa força. Veremos como a disciplina, a oração perseverante, a humildade corajosa e a confiança na providência são armas eficazes. Vamos olhar para a vida de pastores que, mesmo entre dúvidas e quedas, não deixaram de amar e servir. E proporemos práticas possíveis para quem deseja vencer a apatia espiritual e recuperar o ardor missionário.
Em tempos em que muitos desistem de suas vocações, abandonam a missão ou vivem apenas por obrigação, reconhecer a ação da Resistência pode ser o primeiro passo para uma profunda conversão. Como disse certa vez um diretor espiritual: “Não é que você perdeu a fé. Você apenas permitiu que a voz da dúvida falasse mais alto por tempo demais.” Talvez este texto seja a oportunidade de ouvir novamente a voz de Deus, que não grita, mas chama. E de calar, pouco a pouco, a voz da Resistência, que não cala, mas mente.
Que esta leitura seja, antes de tudo, uma convocação. Não para uma guerra exterior, mas para uma decisão interior: a de não deixar que a apatia, o medo ou o cansaço tenham a última palavra. Porque, no fim, a vocação é sempre um ato de amor. E o amor, mesmo ferido, mesmo hesitante, mesmo cansado, sempre encontra um jeito de persistir.
A Resistência e Seus Mecanismos
A Resistência não age por meio de tentações escandalosas como citamos acima, seu poder está na sutileza. Ela não convida o sacerdote a abandonar o altar, mas a subir a ele sem o coração. Não persuade o religioso a deixar o hábito, mas a vesti-lo como um uniforme vazio. Não o confunde em suas pregações, mas se faz de boa oradora de palavras vazias e sem vida. Seus mecanismos são múltiplos, mas todos convergem para um mesmo fim: impedir a entrega total.
Mecanismo 01: A Tirania do “Ainda Não”
“Quando terminar meus estudos, serei um padre mais preparado.”
“Quando tiver mais experiência, darei melhor direção espiritual.”
“Quando resolver minhas fraquezas, serei digno de servir.”
Essa é a voz da Resistência disfarçada de discernimento. Ela convence o consagrado de que há um momento certo para agir, um momento que, curiosamente, nunca chega. Santo Agostinho conhecia bem esse jogo. Sua oração, “Senhor, dá-me castidade, mas não agora”, revela o paradoxo de quem reconhece o bem, mas resiste em abraçá-lo. A conversão só veio quando ele rompeu com essa lógica e agiu apesar das próprias inseguranças.
Na vida pastoral, esse mecanismo é especialmente cruel. Quantos talentos se perdem porque seus portadores esperam uma preparação que a vida nunca concede antecipadamente? O seminário forma, mas não termina a formação. A teologia ilumina, mas não substitui a ousadia da fé. Como escreveu o Papa Francisco: “Deus não te ama porque és bom; tu és bom porque Deus te ama.” A Resistência quer que o religioso esqueça essa verdade, prendendo-o na ilusão de que ele precisa merecer antes de servir.
Mecanismo 02: A Prisão do Perfeccionismo
Há um tipo de zelo que, em vez de edificar, paralisa. É o zelo do missionário que não evangeliza porque “não domina todas as respostas”. Da freira que não escreve porque “não está inspirada”. Do padre que não prega com vigor porque teme não estar à altura.
Esse perfeccionismo não é virtude, mas armadilha. A Resistência sabe que, se conseguir convencer o consagrado de que só pode agir em estado de plenitude, ele nunca agirá. Pois quem, nesta vida, alcançou tal estado? Santa Teresa de Lisieux confessou que, ao entrar no Carmelo, imaginava-se uma santa heroína. A realidade foi diferente: “Descobri que era fraca, muito fraca.” Mas foi justamente essa descoberta que a libertou, pois a santidade não é obra da perfeição humana, mas da graça que age na fraqueza.
Mecanismo 03: O Medo que Se Disfarça de Prudência
“E se eu errar?”
“E se não der certo?”
“E se as pessoas criticarem?”
Perguntas legítimas, quando não se tornam algemas. A Resistência transforma o cuidado pastoral em cálculo excessivo, a prudência em paralisia. O padre que modera sua homilia para não desagradar, o leigo que recusa um ministério por medo de falhar – ambos podem estar diante de um sinal revelador: quanto maior o temor, mais urgente é a necessidade de avançar. Pois o verdadeiro perigo não está no erro cometido por ousar, mas na armadilha silenciosa de acreditar que o medo é um aviso para recuar, quando, na verdade, é o mapa que aponta para onde a graça quer agir.
São João Paulo II, ao iniciar seu pontificado, não prometeu segurança. Gritou: “Não tenhais medo!” – não porque o medo fosse ilusório, mas porque sua intensidade era a medida exata da importância do passo a ser dado. A coragem cristã não é ausência de temor, mas a sabedoria de interpretá-lo: “Se estou tremendo, é porque estou diante de algo que vale a pena”. A Resistência, porém, mente ao sugerir que o desconforto é sinal de perigo, quando, nas vocações autênticas, ele é quase sempre sintoma de crescimento.
No deserto da tentação, Cristo não fugiu do medo – transformou-o em altar. Os mártires não o eliminaram – fizeram dele combustível. A história da Igreja é escrita por aqueles que entenderam: o tremor nas mãos ao segurar a Cruz não é defeito, mas a confirmação de que se está carregando algo sagrado.
Pois no Juízo Final, não seremos questionados sobre quantas vezes caímos ao correr em direção à missão, mas sobre quantas vezes ficamos imóveis por acreditar que o medo era uma fronteira – quando, na verdade, era apenas o portal. “A porta é estreita” (Mt 7,13), e é justamente seu aperto que confirma: você está no limiar do Reino.
Mecanismo 04: O Ativismo que Esconde o Vazio
Talvez o mecanismo mais insidioso seja a substituição da vida interior pela agitação exterior. A Resistência sorri quando o religioso, religiosa, leigo e leiga corre de compromisso em compromisso, mas não faz mais oração, apenas recita. Quando o padre celebra a Missa como um rito a cumprir, não como um mistério a reviver.
Santa Teresa de Calcutá alertava: “Não é o quanto fazemos, mas quanto amor colocamos no que fazemos.” A Resistência, porém, prefere mil atividades sem alma a uma única feita com presença. Porque sabe: um coração ocupado, mas não transformado, é terreno estéril para a graça.
Mecanismo 05: A Tristeza como Armadilha Espiritual
Há uma tristeza que nasce do amor, como as lágrimas de Cristo sobre Jerusalém, ou a dor de tristeza de São Paulo por seus irmãos judeus (Rm 9,2). Essa dor é sagrada: sinal de um coração que ainda arde. Mas há outra tristeza, sombria e estéril, que a Resistência injeta sorrateiramente na alma fiel, um veneno que se disfarça de “realismo”, enquanto corrói as raízes da vocação.
O sacerdote que olha o povo e pensa “Ninguém muda mesmo” não está sendo profeta. Está doente. A religiosa que julga “o carisma da congregação se perdeu” não está discernindo. Está definhando. O leigo que murmura “Por que continuar?” não está cansado. Está sendo enganado. Nossa época medicalizou a dor da alma. Laboratórios e algoritmos nos convenceram de que toda angústia é desequilíbrio químico, toda melancolia transtorno, todo cansaço síndrome. Pressfield alerta: a Resistência é especialista em criar doenças imaginárias para justificar a desistência. Quantos abandonaram vocações porque acreditaram que sua tristeza era doença, quando, na verdade, era apenas o peso glorioso da cruz?
Mas há um reverso terrível: há almas realmente enfermas, cuja depressão não é fraqueza espiritual, mas enfermidade real, e que, por medo de parecerem “pouco fiéis”, recusam remédios e terapia, agravando seu martírio. Santa Teresa de Lisieux, padroeira dos doentes, sabia disso: morreu entre dores físicas e espirituais atrozes, sem jamais perder a fé, mas aceitando até os analgésicos que a medicina de seu tempo oferecia. A Resistência joga neste campo minado:
- Para alguns, sussurra: “Sua tristeza é normal, aguente firme” – quando a alma precisa de socorro médico.
- Para outros, mente: “Você está doente, desista” – quando o que falta é apenas coragem para seguir em frente.
Os discípulos de Emaús caíram na armadilha. Sua tristeza parecia lógica: “Jesus morreu, acabou” (Lc 24,21). Mas era mentira. Cristo os interceptou no caminho, não para negar sua dor, mas para revelar seu sentido: “Não era necessário que o Cristo sofresse tudo isso?” (Lc 24,26). A chave não estava em suprimir a tristeza, mas em transfigurá-la.
Como discernir?
- A tristeza santa dói, mas não paralisa – como a de Maria ao pé da Cruz. A da Resistência paralisa, mas não purifica.
- A depressão real esvazia até as coisas que antes traziam alegria (cf. Santo Inácio: “desolação que corrompe o passado”). A tristeza mentirosa só ataca o futuro – “não vale a pena continuar”.
- A dor verdadeira pede companhia (como Jó com seus amigos). A falsa isola (“Ninguém me entende”).
A esperança cristã não é negação da tristeza. É o que faz o sacerdote idoso, mesmo desanimado, vestir a estola e celebrar. A religiosa exausta rezar o ofício com lábios secos. O leigo ferido servir na soupléia. Não por força própria, mas porque – como gritou Chesterton – “o cristianismo não foi testado e achado fácil; foi achado difícil e não desistido”. No fim, venceremos não quando a tristeza desaparecer, mas quando, como Cristo no Getsêmani, dissermos: “Não se faça a minha vontade, mas a Tua” (Lc 22,42) – e, levantando-nos do chão, seguirmos em frente com o mesmo rosto ensanguentado, mas os passos firmes na direção da Cruz.
Mecanismo 06: A Comparação que Destrói a Identidade
Outro disfarce da Resistência é a comparação constante. O sacerdote olha para o colega cuja paróquia é mais cheia, cujos sermões são mais aplaudidos, cuja presença nas redes sociais atrai multidões. A religiosa vê a outra mais serena, mais produtiva, mais admirada. O leigo comprometido observa aqueles que parecem ter mais tempo, mais dons, mais reconhecimento. A comparação, longe de inspirar crescimento, rouba a paz e mina a vocação.
Essa dinâmica é particularmente venenosa, pois começa com admiração legítima, mas se degenera em frustração silenciosa. A Resistência usa isso para convencer o indivíduo de que sua missão é pequena, sua entrega é inútil, sua presença é dispensável. Esquecemos que a graça age de forma única em cada um. Como ensina São Paulo, “há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo” (1Cor 12,4). A comparação nos afasta do dom que somos e nos prende a uma imagem que nunca seremos.
A cura para essa ferida é a contemplação da própria história com gratidão. É redescobrir que fomos chamados pelo nome, que temos um lugar insubstituível no Corpo de Cristo, e que a fecundidade da missão não depende da visibilidade, mas da fidelidade.
Mecanismo 07: A Distorção da Identidade Vocacional
A Resistência também atua por meio da confusão interior. Quando um religioso começa a se definir apenas por suas funções – “sou pároco”, “sou coordenadora”, “sou responsável por” há um risco de reduzir a identidade vocacional ao fazer, e não ao ser. E quando esse fazer é interrompido, por transferência, enfermidade, fracasso ou incompreensão, o vazio se instala. “Se não sou mais isso, quem sou eu?”
Esse é um campo fértil para a Resistência. Ela planta a dúvida: “Talvez eu tenha me enganado de vocação.” Insinua que a alegria experimentada no início era ilusão. Amplifica os erros, esconde os frutos, distorce a percepção da missão. O consagrado se vê como um impostor, alguém que ocupa um lugar que não lhe pertence mais.
A resposta é uma retomada radical do “primeiro amor”. Lembrar por que se começou. Reacender a chama com a Palavra, com o silêncio, com a memória da eleição. A identidade vocacional não é algo que se conquista, mas que se acolhe. E permanece, mesmo quando os papéis mudam, porque é dom irrevogável de Deus.
Mecanismo 08: O Cansaço Disfarçado de Realismo
Com o tempo, a Resistência assume uma roupagem madura. Ela não grita nem provoca escândalos. Simplesmente sussurra: “Já fiz minha parte. Agora é hora dos outros.” O cansaço se disfarça de realismo, e o idealismo dos primeiros anos dá lugar a um conformismo resignado.
Esse é um perigo comum entre os que já enfrentaram batalhas, superaram crises e continuam firmes – mas sem mais ardor. A alma fica morna. Os olhos já não brilham. A missão se torna rotina. E a Resistência sorri, satisfeita: ela não quer que desistamos visivelmente, mas que sigamos desanimados.
É aqui que os santos brilham com mais força. São Francisco, no fim da vida, dizia: “Comecemos, irmãos, porque até agora fizemos pouco.” Santa Teresa de Calcutá continuava cuidando dos pobres com o corpo alquebrado e a alma sedenta. Não porque se sentiam fortes, mas porque sabiam que a graça se renova a cada manhã, e com ela, o chamado.
Mecanismo 09: A Presença Invisível da Resistência no Cotidiano
A Resistência não aparece apenas nos grandes momentos de decisão. Ela se infiltra no cotidiano: no despertador que toca e é adiado, na leitura espiritual deixada para depois, no encontro pastoral que vira formalidade, na direção espiritual cancelada por cansaço. Ela age no detalhe, porque sabe que a santidade se constrói na fidelidade das pequenas coisas.
E é justamente aí que pode ser vencida. Com decisões simples, repetidas, firmes:
Levantar-se na hora marcada.
Fazer silêncio mesmo no barulho.
Celebrar com reverência, mesmo quando ninguém parece atento.
Amar sem esperar retorno.
Persistir quando tudo parece em vão
Mecanismo 10: Quando a Resistência Assume a Forma de Teologia
A Resistência é astuta. Quando percebe que não pode vencer pelo cansaço ou pela dúvida, ela recorre ao discurso piedoso e até à teologia. É quando começamos a ouvir frases como: “Deus não exige tanto assim”, “o essencial é amar”, “o importante é a intenção”, “Deus acolhe e perdoa todos os seus em sua infinita misericórdia”. Todas essas afirmações, fora de contexto, tornam-se justificativas para o comodismo e o abandono do rigor espiritual.
O Evangelho exige tudo. Jesus não convida à mediocridade, mas ao caminho estreito, ao abandono total. Quando a Resistência se infiltra na linguagem teológica, ela embota o fervor missionário com justificativas aparentemente espirituais. A radicalidade evangélica é trocada pela razoabilidade confortável.
Vemos isso nos ambientes pastorais onde a excelência é ridicularizada como “perfeccionismo”, e o zelo é confundido com fanatismo. A entrega total é chamada de exagero. A oração constante é vista como escapismo. Assim, a alma vai se acomodando a uma mediocridade elegante – e a Resistência, mais uma vez, triunfa.
A única forma de desmascarar esse engano é voltar ao Evangelho puro e duro. A Palavra de Jesus é espada que corta e não permite acomodações. “Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la” (Mt 16,25). Essa frase continua sendo o termômetro de toda vocação autêntica.
Mecanismo 11: O Silêncio como Lugar de Combate
Em um mundo ruidoso, a Resistência teme o silêncio. Porque é no silêncio que Deus fala. É no recolhimento que a alma escuta a verdade, percebe o vazio disfarçado de atividade, sente a ausência de sentido onde antes havia fervor. Por isso, a Resistência nos mantém sempre ocupados – até mesmo com coisas boas.
Ela transforma o ativismo pastoral em ruído espiritual. Multiplica reuniões, compromissos, planejamentos, grupos e mais grupos… e vai esvaziando o centro da vida espiritual. O ministro de Deus se torna um gerente de atividades. A consagrada vira uma coordenadora de tarefas. E a alma, exaurida, não percebe que se afastou da Fonte.
O silêncio, então, é reabilitado como espaço de luta. Não como fuga do mundo, mas como retorno à intimidade com o Amado. É preciso reaprender a calar. A deixar que Deus fale. A aceitar o desconforto da ausência de respostas. Porque ali, no deserto do silêncio, a Resistência perde força – e a alma volta a florescer.
Mecanismo 12: A Resistência ao Amor
Pode parecer estranho, mas a forma mais sutil e destrutiva da Resistência é justamente a recusa em amar. Não o amor afetivo ou sentimental, mas aquele que implica doar-se sem medida, entregar-se sem garantias, permanecer mesmo sem retorno.
A vida consagrada, sacerdotal e missionária é, por essência, uma escola de amor. E a Resistência tenta corromper essa escola desde dentro. Semeia mágoas entre irmãos, rivalidades entre comunidades, frieza entre formadores e formandos. Convence o coração ferido de que é mais seguro fechar-se, proteger-se, sobreviver em vez de se dar.
Assim, a caridade esfria. O perdão se torna raro. O acolhimento vira formalidade. A vida fraterna é mantida por normas, mas já não pulsa. A Resistência vence quando nos convence de que amar é perigoso, e por isso é melhor manter distância.
Mas a única resposta possível é amar ainda mais. Amar mesmo ferido. Amar com a força do Crucificado. Porque é esse amor que redime o mundo, que sustenta as vocações e que faz florescer comunidades.
Pode um dia a resistência ser vencida?
Há um momento sagrado, silencioso e decisivo na vida de todo o fiel, um instante que não aparece nos relatórios pastorais, não é celebrado em cerimônias e pode passar despercebido até pelos anjos. É o momento em que a Resistência, essa força tenaz que por anos talvez tenha assombrado a alma, finalmente é derrotada. E essa vitória não vem com fanfarras, não chega com o sucesso ministerial ou o reconhecimento humano. Surge discretamente, no escuro do quarto, no cansaço da alma, quando, sem forças, sem inspiração, sem sequer sentir a presença de Deus, você simplesmente decide continuar.
Esse dia sagrado tem muitas faces:
- É a manhã em que o padre idoso, após 50 anos de ministério, veste a estola outra vez, mesmo sem sentir “nada”.
- É a noite em que a religiosa reza o ofício com lábios secos, palavra por palavra, sílaba por sílaba.
- É o instante em que o missionário, após anos sem ver frutos, planta a semente mais uma vez.
- É o “sim” rouco do leigo que continua amando, servindo, acreditando – contra toda evidência.
Não há testemunhas para esse milagre. Nenhum troféu é concedido, nenhum aplauso soa. Mas Deus, que vê no secreto (Mt 6,6), inclina-se sobre a terra e sorri. Pois naquele instante, o coração humano fundiu-se ao de Cristo no Getsêmani, que também tremeu, também suou sangue, também clamou: “Pai, afasta de mim este cálice!” (Lc 22,42). Mas que, no fim, pronunciou as palavras que redimiram o mundo: “Seja feita a Tua vontade”.
A Resistência é derrotada precisamente assim:
- Quando o sacerdote, após anos de ministério, ouve outra confissão repetitiva com a mesma misericórdia do primeiro dia.
- Quando a freira idosa ouve e aconselha com o mesmo amor com que ouviu e aconselhou em seu noviciado.
- Quando o pai de família reza com os filhos apesar do cansaço de mais um dia de trabalho.
- Quando o bispo escreve mais uma carta pastoral com o fogo da juventude.
Esses atos não fazem manchetes. Não rendem likes nas redes sociais. Não constam nos relatórios da Cúria. Mas são eles que, mais do que todos os congressos e programas pastorais juntos, sustentam a Igreja. São os tijolos invisíveis com que se constrói o Reino. Santa Teresa de Calcutá chamava isso de “fé pura”: “Deus não exige que sejamos bem-sucedidos, apenas fiéis”. O mártir não vence no momento do suplício, mas na noite anterior, quando, sozinho em sua cela decide: “Amanhã, não negarei meu Senhor”. A madre superiora não é santa no dia em que funda a congregação, mas nas madrugadas sem fim em que lava as chagas dos pobres sem que ninguém veja.
Por isso, se hoje você está no escuro, se a Resistência sussurra que “não vale a pena”, lembre-se: o céu não se comove com nossos triunfos, mas com nossos recomeços. Cada “sim” dado no deserto, cada passo dado na escuridão, cada lágrima enxugada no rosto alheio, eis a verdadeira glória da Igreja.
No final, descobriremos que os maiores santos não foram necessariamente aqueles que fizeram coisas extraordinárias, mas os que fizeram coisas ordinárias com amor extraordinário, dia após dia, ano após ano, até que o último “sim” se tornou a escada pela qual subiram ao Céu. E quando a história for escrita na luz eterna, veremos: foram esses “pequenos” atos de fidelidade no escuro que, mais do que todos os discursos e programas, moveram o coração de Deus e transformaram o mundo.
Conclusão
A Resistência nunca desaparece por completo. Enquanto houver vocação, missão, desejo sincero de amar a Deus, ela continuará rondando, sussurrando, tentando, travestida de bom senso, cansaço ou até mesmo espiritualidade. Mas também é verdade que, quanto mais reconhecemos seus disfarces, mais fraca ela se torna.
Este ensaio não pretendeu oferecer soluções mágicas, nem receitas de superação. Antes, quis ser uma tocha acesa nas mãos de quem luta todos os dias para permanecer fiel. Uma palavra de alento para os que choram sozinhos depois das reuniões. Um sopro de coragem para os que sentem vergonha da própria fragilidade. Um abraço silencioso para os que rezam sem sentir nada, mas não desistem.
A vocação é um fogo que não se apaga. Pode ser abafado, negligenciado, adormecido, mas jamais destruído. Porque quem chama é Deus. E Ele não se arrepende de seus dons. A Resistência é a sombra projetada pela grandeza do chamado. Ela só existe porque existe algo grandioso a ser feito, algo eterno a ser construído, algo divino a ser testemunhado. Cada vez que você a sente, lembre-se: isso é sinal de que está no caminho certo.
Por isso, se hoje você acordou cansado, siga mesmo assim. Se rezar está difícil, diga a Deus o quanto isso te custa. Se as críticas pesam, ofereça em silêncio. Se a solidão machuca, abrace a cruz. Se você caiu, levante-se. Se perdeu o sentido, comece de novo. Você não está só. Nunca esteve. A santidade não é o privilégio dos fortes, mas a perseverança dos que amam. E amar, às vezes, é simplesmente ficar. Permanecer quando todos já foram. Recomeçar pela milésima vez. Escolher Deus de novo. E de novo. E de novo.
A Resistência ainda virá amanhã. Mas hoje, você venceu.