A falácia do “basta querer”: uma crítica ao individualismo

A ideia amplamente difundida de que “você pode ser o que quiser, basta desejar profundamente e agir” tem ganhado força nas últimas décadas, especialmente com o crescimento das correntes de autoajuda e do empreendedorismo. Este pensamento, no entanto, é profundamente individualista e desconsidera a complexidade das condições sociais, culturais e econômicas que moldam o ser humano. Trata-se de um discurso que, embora motivacional, acaba sendo uma armadilha para muitos.

A promessa implícita de que o simples desejo, aliado à ação, pode transformar qualquer pessoa naquilo que ela sonha, ignora um aspecto fundamental da existência humana: somos seres coletivos. Desde o nascimento, nossa identidade, potencialidades e limitações são profundamente influenciadas pelas condições em que estamos inseridos — nossa família, nossa comunidade, nosso ambiente de trabalho e, sobretudo, as oportunidades que nos são ou não oferecidas.

Como Zygmunt Bauman pontua, na modernidade líquida em que vivemos, a busca por liberdade individual pode criar um efeito oposto, gerando um sentimento de “solidão coletiva”, onde os indivíduos, ao se focarem em suas jornadas pessoais de sucesso, se veem cada vez mais desconectados da coletividade. Para Bauman, a narrativa do sucesso pessoal desconsidera que “o outro” também é parte essencial de nossa existência .

A ilusão da meritocracia individualista

O primeiro equívoco desse discurso está na promoção da chamada meritocracia, uma crença de que o sucesso é puramente resultado do esforço individual. Esse conceito ignora as desigualdades estruturais que permeiam a sociedade. Como dizer a alguém que nasceu em um ambiente de extrema pobreza que ele pode ser o que quiser, bastando apenas querer e agir? Como esse discurso se sustenta diante das inúmeras barreiras sociais e econômicas que limitam o desenvolvimento de grande parte da população mundial?

Essa falácia do “basta querer” desconsidera as críticas feitas por autores como Pierre Bourdieu, que destacou como o “habitus” de cada indivíduo é moldado por seu ambiente social e como essas disposições influenciam as chances de sucesso. Segundo ele, as estruturas sociais são determinantes para a formação dos capitales econômico, social e cultural, e “o destino individual está vinculado ao destino coletivo, sendo impossível separar um do outro” .

Não se trata de negar o valor do esforço pessoal ou a importância da ação, mas de reconhecer que esses fatores são apenas parte da equação. As redes de apoio, as condições estruturais e o ambiente em que uma pessoa está inserida têm um papel determinante naquilo que ela pode ser ou alcançar. Um indivíduo pode ter toda a determinação do mundo, mas se as condições ao seu redor forem hostis, suas chances de realizar seu potencial são drasticamente reduzidas.

A importância do ecossistema social

Vivemos em um ecossistema complexo, no qual nossas ações e decisões individuais estão constantemente influenciadas por fatores externos. Nossa educação, saúde mental, acesso a oportunidades, relacionamentos interpessoais e até o meio ambiente físico em que estamos inseridos desempenham papéis essenciais em nossa trajetória de vida.

Autores como Edgar Morin salientam a importância da interdependência entre o indivíduo e o coletivo. Para ele, “o ser humano não é uma entidade isolada, mas uma parte inseparável de um conjunto de relações que o sustentam e o constituem” . A noção de que basta agir para ser o que se deseja desconsidera essa interconexão. O “ser” em sua plenitude não é alcançado isoladamente, mas em harmonia com o habitat e o ecossistema social que o cerca.

Quando esse discurso individualista é aplicado de maneira acrítica, ele invisibiliza os problemas coletivos, como a desigualdade social, a precarização do trabalho, a falta de políticas públicas de qualidade, a degradação ambiental e tantos outros fatores que afetam diretamente a vida de milhões de pessoas. Reduz-se a complexidade da vida a uma simples questão de “força de vontade”, o que não apenas é falso, mas cruel com aqueles que enfrentam obstáculos muito além do seu controle.

O impacto do discurso no indivíduo

Além de desconsiderar os aspectos coletivos, essa cultura do “querer é poder” pode ter um impacto psicológico negativo. Ao acreditar que o sucesso depende exclusivamente de suas próprias ações, o indivíduo passa a sentir uma responsabilidade desproporcional sobre seus fracassos. Não ter alcançado um determinado objetivo, nesse contexto, é visto como uma falha pessoal, gerando sentimentos de culpa, vergonha e, muitas vezes, depressão.

O psicólogo Barry Schwartz, em seu livro O Paradoxo da Escolha, argumenta que esse tipo de pensamento cria uma pressão excessiva sobre os indivíduos. Em vez de oferecer liberdade, a crença de que somos totalmente responsáveis por nosso destino, sem levar em conta as limitações impostas pela sociedade, acaba gerando ansiedade e culpa, uma vez que qualquer fracasso é visto como resultado direto da incompetência pessoal .

A verdade, no entanto, é que o ser humano é moldado por uma série de fatores externos que fogem ao seu controle. O ambiente social, as oportunidades que surgem (ou não), os recursos disponíveis, o apoio de outros, são todos elementos que contribuem para o sucesso ou o fracasso de uma empreitada. Portanto, responsabilizar o indivíduo de forma isolada pelos seus fracassos é não apenas injusto, mas desumanizante.

O ser coletivo como alternativa

Uma alternativa crítica a esse pensamento individualista é a ideia de que somos seres coletivos e interdependentes. Em vez de focar apenas no desenvolvimento pessoal, devemos olhar para o desenvolvimento da comunidade como um todo. Isso significa reconhecer que o sucesso individual está intimamente ligado às condições do ecossistema social em que estamos inseridos.

Boaventura de Sousa Santos nos oferece uma perspectiva interessante, argumentando que “a transformação social só é possível quando os sujeitos reconhecem a interdependência e a solidariedade como valores centrais” . Assim, o verdadeiro progresso pessoal só pode ser alcançado em uma sociedade que promova justiça social e igualdade de oportunidades.

Portanto, a construção de um ser pleno e realizado deve passar por uma transformação coletiva: melhor educação, igualdade de oportunidades, acesso à saúde, respeito ao meio ambiente, entre outras coisas. O “eu” não existe em isolamento, e somente através de um alinhamento entre o indivíduo e seu ambiente podemos alcançar uma realização genuína.

Conclusão

A ideia de que o simples desejo e ação pessoal são suficientes para realizar qualquer coisa é uma falácia. Esse discurso, por mais inspirador que pareça, desconsidera a complexidade do ser humano e sua interdependência com o meio em que vive. A verdadeira realização não se dá no isolamento, mas na relação entre o indivíduo e seu ecossistema. Para que possamos ser, de fato, aquilo que desejamos, é necessário que o coletivo, o habitat e o ambiente social estejam em sintonia. Sem isso, estamos apenas repetindo um mito individualista que serve mais para justificar desigualdades do que para promover um desenvolvimento humano real e sustentável.

Essa mentalidade individualista também contribui para a fragmentação social, onde cada indivíduo se preocupa apenas com seu progresso pessoal, deixando de lado as questões que afetam a coletividade. Como consequência, a solidariedade, a cooperação e a busca por justiça social acabam sendo ofuscadas pela competição e pelo foco exagerado no sucesso pessoal. A noção de que “somos todos interdependentes” deve ser resgatada, pois somente através da cooperação e do apoio mútuo podemos superar as barreiras sociais que nos limitam enquanto indivíduos e sociedade.

Portanto, o verdadeiro caminho para a realização humana passa pelo reconhecimento de que o progresso individual e coletivo estão entrelaçados. A construção de um mundo mais justo e equilibrado requer o fortalecimento das redes de apoio social, o investimento em políticas públicas que proporcionem igualdade de oportunidades e o cuidado com o meio ambiente. Somente quando esses pilares estiverem alinhados, poderemos criar um ecossistema que permita a todos florescerem em seu pleno potencial, sem as limitações impostas por um discurso ilusório de auto-suficiência.


Referências

  1. Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar.
  2. Bourdieu, P. (1986). A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp.
  3. Morin, E. (2002). A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
  4. Schwartz, B. (2004). The Paradox of Choice: Why More is Less. New York: HarperCollins.
  5. Santos, B. de S. (2010). A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez.

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