Fazei Novas Todas as Coisas: duas ferramentas que podem ajudar
Há momentos em que a vida pastoral parece ter entrado em modo repetição. Um loop mensal, anual e até de décadas, como se ali naquele lugar, nada muda ou nada é feito. As reuniões seguem roteiros antigos, as homilias soam previsíveis, os retiros se tornam ecos do que já foi feito. Não por falta de fé, nem por ausência de boa vontade, mas porque algo se apagou na chama do novo. A criatividade parece ter se rendido à segurança da tradição. E assim, muitos líderes leigos, padres e religiosos(as) enfrentam uma inquietação silenciosa: como inovar sem trair a fé? Como ousar sem desrespeitar o que é sagrado?
Essa tensão entre tradição e renovação acompanha a Igreja desde seus primeiros passos. Os Atos dos Apóstolos são testemunhas de uma comunidade que, mesmo firmada nas promessas do Cristo ressuscitado, foi desafiada a sair de Jerusalém, acolher os pagãos, estabelecer ministérios e pensar novas formas de evangelizar. Não houve ruptura com o fundamento, mas sim uma fidelidade criativa ao Espírito que sopra onde quer (Jo 3,8).
No entanto, nos dias atuais, essa coragem criativa parece enfraquecida por algumas armadilhas: o medo de errar, a pressão por manter estruturas, a crítica de setores mais conservadores, ou simplesmente o cansaço de uma rotina que absorve toda a energia. É natural que os líderes sintam bloqueios ou dúvidas. E é nesse cenário que este ensaio se oferece como um sopro, ou, talvez, um empurrão fraterno.
A proposta aqui não é apresentar fórmulas mágicas nem receitas prontas, mas provocar perguntas, abrir caminhos, resgatar o valor da criatividade pastoral como Dom do Espírito. Uma criatividade que nasce não da ousadia vazia, mas da escuta profunda da realidade e da oração silenciosa que molda a alma. Criar não é romper. Criar é confiar. Criar é permitir que o Espírito continue encarnando o Verbo nas linguagens de cada tempo.
Vamos resgatar algumas ferramentas práticas, como o método S.C.A.M.P.E.R e o Pensamento Lateral, mas também nos debruçaremos sobre as Escrituras, a Tradição viva da Igreja e a experiência de santos e santas que ousaram fazer diferente, mantendo-se fiéis ao essencial. Vamos falar de métodos, mas também de espiritualidade. De dinâmicas em grupo, mas também de silêncios fecundos. De processos de ideação, mas também de discernimento.
Este texto é para você, que sente um desconforto ao ver a comunidade estagnada, mas não sabe por onde começar. Para você, que foi criticado ao tentar algo novo e agora teme insistir. Para você, que quer evangelizar os jovens, mas não encontra linguagem. Para você, que tem ideias, mas falta apoio. Para você, que ama a Igreja e deseja vê-la viva, vibrante e fecunda.
Mais do que um manual, este é um convite: a recuperar a ousadia de Pentecostes, quando os discípulos saíram do medo e falaram novas línguas. A permitir-se experimentar, errar, aprender. A escutar o Espírito que nos provoca a “fazer novas todas as coisas” (cf. Ap 21,5), não como ruptura, mas como continuidade viva da fé.
Inovar na Igreja não é um luxo. É uma forma de fidelidade.
O Medo de Mudar: Quando a rotina vira prisão
É curioso perceber como a rotina pastoral, que deveria nos servir como estrutura de cuidado, muitas vezes se transforma numa prisão silenciosa. Aquilo que começou como zelo se cristaliza em rigidez. O que um dia foi inspiração, agora é repetição. As reuniões têm a mesma pauta. Os retiros seguem o mesmo modelo. As festas litúrgicas já não provocam espanto nem encantamento. Tudo é previsível, inclusive os conflitos.
Mas há algo mais profundo que impede a mudança: o medo. Medo de parecer moderno demais. Medo de perder a reverência. Medo de ser mal interpretado pelos superiores ou pelos fiéis. Medo de que, ao mudar, tudo desmorone. E assim, continuamos reproduzindo práticas que já não falam aos corações, apenas porque “sempre foi assim”.
Esse medo, porém, não é novo. Está nas entrelinhas do Evangelho. Nicodemos, por exemplo, procurou Jesus à noite. Era fariseu, homem de fé e estudo, mas temia o julgamento. Jesus o provoca: “É preciso nascer de novo” (Jo 3,7). A resposta do Mestre não é um conforto, mas um chamado à transformação. A mesma transformação que nos é pedida hoje.
Muitas comunidades estão adoecidas por esse medo de nascer de novo. Preferem manter aparências a enfrentar processos reais de conversão pastoral. Com isso, resistem a ideias novas, desconfiam de propostas diferentes, desautorizam quem ousa perguntar “e se fizéssemos de outro jeito?”.
Apegamo-nos ao formato como se ele fosse o conteúdo. Mas o formato é transitório. O conteúdo, o Evangelho é eterno, mas vivo. E onde há vida, há mudança. A fidelidade verdadeira não está em repetir sempre igual, mas em permanecer conectados ao essencial. “Não se põe vinho novo em odres velhos” (Mt 9,17), disse Jesus. Quantos de nossos odres estão ressecados pela repetição?
O medo de mudar, muitas vezes, se disfarça de prudência. Mas há uma prudência que mata. Mata a criatividade, a ousadia, a escuta sincera da realidade. Em nome da prudência, calamos o Espírito. Em nome da tradição, negamos a própria história da Igreja, que sempre foi feita de rupturas criativas, concílios, reformas, carismas.
É preciso reconhecer: mudar dói. Romper hábitos cansa. Abrir espaço para o novo exige coragem, escuta, humildade e discernimento. Mas a dor da mudança é menor do que a dor da estagnação. Paróquias que não se renovam se tornam irrelevantes. Religiosos que não ousam se tornam burocratas. Líderes que não se arriscam se tornam meros repetidores de programas.
Se você sente esse medo, não se condene. Ele é humano. Mas não permita que ele te paralise. Reconheça-o, escute-o, dialogue com ele, e, com fé, dê um passo além. A verdadeira obediência é ativa: escuta, questiona, propõe, busca caminhos.
Como dizia Dom Hélder Câmara: “Quando sonhas sozinho, é só um sonho. Quando sonhamos juntos, é o começo da realidade.”
Mudar não é trair a Igreja. Mudar é honrá-la, sendo fiel ao Espírito que a move desde o princípio.
SCAMPER: Um Método Cristão de Criatividade?
Existe uma falsa dicotomia que muitas vezes nos aprisiona: a de que criatividade é coisa do “mundo” e que, na Igreja, o certo é repetir o que sempre deu certo. Como se criar fosse desrespeitar. Como se imaginar fosse desviar. Mas a verdade é que o Espírito de Deus é também fonte criadora. Deus não apenas criou o mundo, Ele cria sempre, e convida seus filhos a participarem dessa criação contínua, inclusive nas estruturas e práticas da Igreja.
Foi nesse espírito que Bob Eberle na década de 1970 desenvolveu o método SCAMPER. Originalmente pensado para processos industriais e educacionais, ele se revela útil também em ambientes pastorais e comunitários. Porque, na essência, SCAMPER é uma forma organizada de fazer perguntas provocadoras. E toda boa pastoral começa com uma pergunta que nos tira do automático.
SCAMPER é um acrônimo para sete verbos: Substituir, Combinar, Adaptar, Modificar, Propor outro uso, Eliminar e Reverter. O método não oferece respostas, mas nos obriga a olhar para nossas práticas com outros olhos.
1. Substituir
“O que posso trocar sem comprometer o essencial?”
Será que o tradicional retiro de quaresma poderia ser substituído por uma jornada digital de oração guiada? Podemos substituir as cartilhas impressas por vídeos curtos? Substituir reuniões longas por encontros mais afetivos e formativos? Jesus substituiu a lógica da lei pela lógica do amor, sem invalidar a lei. O Evangelho não é apego ao formato, mas fidelidade ao sentido.
2. Combinar
“O que posso unir para gerar algo novo?”
E se uníssemos a catequese com a pastoral do meio ambiente? Ou a pastoral do dízimo com testemunhos pessoais sobre generosidade? Podemos combinar talentos dentro da comunidade para criar novos ministérios? A combinação é um princípio divino: o Pai se combinou ao Filho e ao Espírito. A Trindade é a mais bela forma de criatividade em comunhão.
3. Adaptar
“O que posso ajustar ao meu contexto?”
Pastorais copiadas de outras realidades às vezes não funcionam. Mas talvez, adaptadas, floresçam. Um grupo de jovens do interior pode adaptar atividades urbanas à sua cultura. Um missionário pode adaptar a liturgia para acolher migrantes. Adaptar é respeitar o contexto. É ouvir a realidade. É fazer como Paulo, que se fez tudo para todos (cf. 1Cor 9,22).
4. Modificar
“O que posso transformar?”
O tamanho da celebração, a linguagem da homilia, a música do grupo. Às vezes, uma simples modificação acende o ânimo de uma comunidade. Modificar não é destruir. É renovar com cuidado e escuta. A liturgia, por exemplo, evoluiu ao longo dos séculos sem perder seu centro.
5. Propor outro uso
“O que poderia ser usado de forma diferente?”
Um salão paroquial ocioso pode virar espaço de acolhimento. Uma rede social da paróquia pode ser canal de evangelização e escuta. Um grupo de senhoras pode ensinar espiritualidade a jovens. A pastoral da criança pode inspirar a catequese. Deus é mestre em dar novo uso ao que parecia perdido: a cruz virou ressurreição.
6. Eliminar
“O que posso parar de fazer?”
Há reuniões que não precisam mais acontecer. Projetos que já não tocam ninguém. Discursos que só repetem o medo. Eliminar não é abandonar, é desapegar do que já não dá fruto (cf. Jo 15,2). Eliminar é abrir espaço. A poda é um ato de confiança no florescer.
7. Reverter
“E se fizéssemos de trás pra frente?”
E se começássemos a catequese ouvindo as perguntas das crianças? E se a liturgia fosse preparada por leigos e validada pelo padre? E se as decisões da comunidade partissem das periferias? Jesus reverteu a lógica dos poderosos. Lavou os pés. Subiu no jumentinho. Morreu para vencer. Reverter é olhar com o olhar do Evangelho.
Pensamento Lateral e Inspiração do Espírito
Às vezes, as soluções que buscamos não estão na nossa frente, mas ao lado. Não surgem de mais esforço, mas de uma mudança de direção no olhar. É nesse ponto que o conceito de pensamento lateral, proposto por Edward de Bono, se aproxima surpreendentemente da ação do Espírito Santo na história da salvação.
Pensar lateralmente é sair da lógica linear e previsível. É evitar o caminho óbvio, não por rebeldia, mas por abertura. É olhar para um problema como quem busca portas em vez de muros. É perguntar: “E se não for por aqui?”, uma pergunta profundamente evangélica.
Veja o exemplo da multiplicação dos pães: o problema era claro, milhares de pessoas com fome. A solução lógica seria mandá-las embora. Mas Jesus rompe essa linha reta e pergunta: “Quantos pães tendes?” (Mc 6,38). Ele ativa o pensamento lateral, convidando os discípulos a enxergar o que têm, não o que falta. A solução vem da generosidade de um menino e do gesto de partilha. Inesperado. Lateral. Inspirado.
A mesma lógica se aplica à pastoral. Quando uma paróquia enfrenta esvaziamento, por exemplo, a tendência é investir em divulgação, eventos, mais convites. Mas e se a saída estiver em criar espaços de escuta silenciosa? Em desmarcar reuniões? Em começar perguntando às pessoas o que elas sentem falta, e não o que elas deveriam fazer?
O pensamento lateral exige coragem para frustrar expectativas. Ele incomoda. A lógica linear gera menos conflitos, porque segue o fluxo conhecido. Mas a inovação não floresce no conhecido. Ela brota no desvio. No “por quê não?”.
Aqui, a inspiração do Espírito entra como força criadora. O Espírito é especialista em surpreender. Quando achavam que Deus só falava no templo, Ele falou no deserto. Quando esperavam um Messias rei, veio um carpinteiro. Quando Pedro queria evitar a cruz, Jesus falou do grão que morre para dar fruto.
A criatividade pastoral precisa da ousadia do pensamento lateral e da docilidade à inspiração do Espírito. Isso significa:
- Escutar a realidade com ouvidos novos.
- Permitir-se perguntar “e se…” sem medo de parecer ingênuo.
- Abrir espaço para o improvável, mesmo que venha de quem menos esperamos.
- Aceitar que Deus fala também através de ideias inusitadas.
Mas o pensamento lateral não se improvisa. Ele se cultiva. E isso requer práticas que libertem a mente e o coração da rigidez:
1. Oração criativa
Reze fora do habitual. Mude o ambiente. Reze com arte, com símbolos, com silêncio. O Espírito fala onde há espaço.
2. Conversas improváveis
Escute quem não pensa como você. Traga jovens para discutir planejamento. Pergunte a quem não frequenta a Igreja o que o afastou.
3. Jejum de controle
Por um tempo, entregue a liderança de uma pastoral a alguém com ideias novas. Observe. Aprenda. Corrija só o essencial.
4. Risco pastoral
Tente algo que pode não funcionar. E se não funcionar, aprenda com isso. Errar por zelo é melhor do que acertar por omissão.
O pensamento lateral é, antes de tudo, um gesto de humildade: “Talvez eu esteja olhando do ângulo errado.” E a inspiração do Espírito é esse vento que sopra para onde quer (cf. Jo 3,8), exigindo de nós apenas abertura e fé. Como líderes, somos chamados a mais do que administrar o que existe. Somos chamados a escutar o invisível, a dar nome ao ainda não dito, a preparar terreno para o novo que Deus quer plantar.
Pensar lateralmente, no fundo, é viver o Evangelho não como uma linha reta, mas como uma espiral — sempre voltando ao centro, mas por caminhos diferentes. Sempre fiéis, mas nunca fixos. Sempre abertos, como Maria, que não entendeu de imediato, mas disse: “Faça-se”.
Idear em Comunhão: O Corpo pensa junto
A criatividade cristã não é solitária. Nunca foi. O Espírito Santo, que sopra ideias novas, sopra sempre em comunhão. A verdadeira inovação na Igreja não brota de mentes geniais isoladas, mas do Corpo, quando ele pensa junto, reza junto, escuta junto. Não por acaso, o modelo dos primeiros cristãos era sinodal: “tinham tudo em comum” (At 2,44).
A paróquia, a comunidade religiosa, a pastoral, todas essas estruturas são chamadas não apenas a executar tarefas, mas a se tornarem espaços de escuta mútua e co-criação espiritual. No entanto, o que muitas vezes vemos são lideranças sobrecarregadas, que decidem sozinhas, e equipes passivas, que apenas “seguem ordens”. O resultado é o cansaço de uns e a desmotivação de outros.
Para idear em comunhão, é preciso dar voz. É preciso dar vez. É preciso deixar o Espírito atuar não apenas “por meio de mim”, mas entre nós.
Um exemplo simples: certa vez, uma pequena comunidade rural queria revitalizar sua festa do padroeiro. O padre, já desanimado, considerava suspender o evento por falta de envolvimento. Mas, em um gesto de escuta, decidiu reunir pessoas de todas as idades, das senhoras do terço aos jovens do grupo de teatro. Sentaram em círculo, partilharam memórias da festa, falaram das saudades e das frustrações. Dali surgiu a ideia de fazer uma caminhada simbólica pelas casas, resgatando a tradição das visitas, e encerrando com uma missa campal. A ideia não foi de um “líder visionário”. Nasceu do Corpo. E transformou o que seria desistência em renovação.
O que favorece o idear em comunhão?
1. Ambientes seguros para expressão
As pessoas só se abrem quando sentem que suas ideias não serão ridicularizadas ou descartadas. O medo cala. A confiança gera voz. O coordenador que valoriza sugestões, mesmo que não as implemente, já planta um campo fértil.
2. Diversidade de perspectivas
Jovens, idosos, mulheres, pessoas com deficiência, trabalhadores, migrantes… cada um vê o mundo com olhos diferentes. E é nesse entrelaçamento que a criatividade floresce. O Espírito sopra sobre todos, não apenas sobre os “mais preparados”.
3. Escuta contemplativa
Nem toda reunião precisa ter uma pauta rígida. Algumas precisam ser espaços de ruminação espiritual. O que Deus está nos dizendo por meio do silêncio dos fiéis? O que ninguém está dizendo em voz alta, mas paira no ar?
4. Ferramentas visuais e colaborativas
Recursos como quadros brancos, post-its, mapas mentais e até plataformas digitais como Miro ou Jamboard podem ser grandes aliados. Eles ajudam a organizar ideias, gerar conexão entre temas e promover envolvimento.
5. Síntese com discernimento
Idear não é fazer tudo o que se pensa. Após a fase criativa, é preciso discernir com calma, rezar com as ideias, ouvir os impactos e buscar aquilo que é mais frutífero, mesmo que menos “brilhante”.
Idear em comunhão é deixar que o Corpo de Cristo pense com todos os seus membros. O dedo não pensa sozinho. O olho não enxerga em nome do pé. Só em conjunto o Corpo encontra equilíbrio.
É por isso que o Papa Francisco insiste tanto na sinodalidade: caminhar juntos, decidir juntos, sonhar juntos. A inovação eclesial só será verdadeira se for construída na escuta comunitária e na humildade espiritual.
“Não se trata de reinventar a roda, mas de recordar que a roda gira melhor quando todos empurram juntos.”
Quando as ideias nascem do Corpo, o Espírito sopra com mais força. E a Igreja floresce não apenas em inovação, mas em comunhão, o verdadeiro milagre do nosso tempo.
A Tradição é Viva: Criar com raízes, não com amarras
Um dos maiores obstáculos à inovação na vida eclesial é a falsa compreensão de “tradição” como algo fixo, imutável e intocável. Muitos líderes, ao proporem mudanças, escutam com frequência a frase: “Mas sempre foi assim!”, como se a repetição fosse sinal de fidelidade. Mas a verdadeira tradição, na sua essência mais profunda, não é repetição mecânica, e sim transmissão viva.
A palavra “tradição” vem do latim traditio, que significa “entregar, transmitir”. E o que a Igreja transmite? Não são estruturas, costumes nem formatos. É a fé no Cristo ressuscitado, que vive, age, interpela e caminha com seu povo. A tradição é como a raiz de uma árvore: invisível, firme, vital. Mas uma raiz que impede o crescimento da copa é um sinal de doença, não de saúde.
O Catecismo da Igreja Católica afirma:
“A Tradição é a transmissão viva da Palavra de Deus” (CIC, n. 78).
Esse conceito nos liberta. A Tradição não nos prende no passado, mas nos projeta para o futuro, com a sabedoria acumulada por séculos de escuta ao Espírito. Como um rio que corre com águas novas, mas não perde seu leito. Como uma vela que, acesa por outras, mantém a mesma chama, mas não se contenta em queimar sozinha.
Santos e santas foram grandes inovadores justamente por serem enraizados na Tradição. São Francisco de Assis provocou a Igreja com sua pobreza radical. Santa Teresa d’Ávila reformou o Carmelo sem trair a espiritualidade carmelita. Santo Inácio de Loyola trouxe um novo jeito de rezar, discernir e formar líderes, unindo fé e razão. Nenhum deles foi “moderno” no sentido superficial. Todos foram profundamente fiéis àquilo que o Espírito inspirava em seu tempo.
O Papa Bento XVI dizia que “a Tradição é a memória viva da Igreja”. Já o Papa Francisco, com sua linguagem mais direta, alerta contra a “tentação de retroceder, de rigidez, de falsas seguranças”. Para ele, a tradição é a garantia do futuro, não um museu de relíquias.
Então, como saber se uma ideia pastoral está em sintonia com a Tradição? Eis algumas perguntas-chave:
- Preserva o essencial da fé?
A novidade não pode comprometer o núcleo do Evangelho. Mas o núcleo nunca é o formato; é a vida em Cristo. - Responde aos sinais dos tempos?
O Espírito fala também através da realidade. Se os jovens se afastam, se as famílias sofrem, se os pobres clamam, é sinal de que algo precisa mudar. - Promove a comunhão?
Toda inovação que isola, divide ou fere a unidade do Corpo deve ser revista. Criar não é implodir; é integrar. - Nasce da oração e do discernimento?
As ideias que resistem ao silêncio, à escuta da Palavra e à prudência da Igreja são aquelas que mais frutificam.
Criar com raízes é manter o coração voltado ao Cristo, sem medo de mudar a moldura para que o ícone continue visível. É como restaurar uma pintura antiga: não se muda a imagem, mas se limpa a sujeira do tempo para que ela volte a brilhar.
A tradição não é uma âncora que nos afunda, mas uma vela que nos impulsiona. Quando bem compreendida, ela nos protege do modismo e nos libera da estagnação. Ela nos ensina a diferenciar o essencial do acessório, o eterno do passageiro.
Como dizia Mahatma Gandhi, numa frase que se aplica à Igreja:
“Preserva-se o que é bom, adapta-se o que é necessário, renova-se o que já não serve.”
Na vida cristã, ser tradicional não é repetir o passado, é reencontrar a fonte. E só quem volta à fonte consegue abrir novos canais para irrigar os campos do presente.
Conclusão
Não faltam diagnósticos sobre os desafios da Igreja hoje. Sabemos das ausências nas missas, da dificuldade em alcançar os jovens, da sobrecarga dos agentes pastorais, da lentidão em adaptar estruturas, da crise de relevância em muitos territórios. Mas talvez o que falte mais do que diagnósticos seja coragem para confiar: confiar no Espírito, confiar na comunidade, confiar na força sementeira do Evangelho.
A Igreja nunca precisou ser uma máquina perfeita, ela é, desde o início, um corpo frágil e fecundo, humano e divino, barro e sopro. Onde houver dois ou três reunidos em nome de Jesus, haverá possibilidade de recomeçar. Onde houver escuta sincera, oração profunda e abertura verdadeira, o novo sempre será possível. E o novo que vem de Deus nunca rompe com o essencial, ele aprofunda, purifica, alarga.
Este ensaio foi, desde o início, um convite: reacender a chama da criatividade pastoral como expressão de fé. Criar não é apenas ter ideias bonitas. Criar é ato de serviço, discernimento, escuta e doação. É dizer: “Senhor, eis-me aqui, com o pouco que tenho, mas com desejo de que floresça algo novo.”
A fidelidade não se opõe à inovação. Ao contrário: só inova com coragem quem ama profundamente. E só permanece com sentido quem se permite adaptar com sabedoria. É isso que pedimos para nossos líderes leigos, padres, religiosas e religiosos: que voltem a sonhar com o Reino, sem medo de experimentar caminhos novos.
Não se trata de modernizar a fé, mas de encarnar o Evangelho nas formas que tocam os corações de hoje. Não se trata de abandonar a tradição, mas de vivê-la com o frescor do Espírito. Não se trata de fazer diferente por vaidade, mas por fidelidade à missão.
Se uma ideia sua foi silenciada, tente outra vez. Se sua tentativa deu errado, aprenda com humildade. Se está cansado, não se cobre ser herói, apenas permaneça disponível. O Espírito não precisa de brilhantismo; precisa de corações dispostos. Como Maria. Como os discípulos de Emaús. Como tantos que, em silêncio, sustentam a Igreja com sua fidelidade cotidiana.
Talvez o que Deus esteja esperando de você não seja a próxima grande ideia, mas o próximo pequeno passo. Uma escuta. Uma conversa. Uma ousadia discreta.
A Igreja que floresce é a que ousa confiar. Não em si mesma, mas no Deus que sempre faz novas todas as coisas (cf. Ap 21,5). Que este texto seja semente. E que sua comunidade, sua paróquia, sua vocação, ainda que marcada por resistências, seja terra boa.
Que assim seja, alegres na esperança e resilientes na fé!